“As produções da arte sugerem a ideia de homens mais precisos, mais donos de si mesmos, de seus olhos, de suas mãos, mais diferenciados e articulados do que aqueles que contemplam a obra feita e não enxergam os ensaios, os arrependimentos, as desilusões, os sacrifícios, os empréstimos, os subterfúgios, os anos e, finalmente, as circunstâncias favoráveis – tudo quanto desaparece, tudo o que está mascarado, dissipado, reabsorvido, calado e negado, tudo o que é conforme a natureza humana e contrário à sede do maravilhoso – e que constitui, no entanto, um instinto primordial desta natureza.”
Paul Valéry
“A prosa de Paul Valéry caminha provocativamente pelo tênue fio que existe entre a conformação artística e a reflexão sobre a arte.”
Theodor W. Adorno
“Valéry propunha fundar toda crítica na avaliação da distância que separa a obra de seu projeto.”
Roland Barthes
Entre 1924 e 1945 a Editora Gallimard publicou os cinco volumes que compõem a obra Variété, de Paul Valéry. No último volume, aparecido no mesmo ano da morte do poeta, os editores fizeram anteceder o índice por uma “classificação por assuntos das matérias contidas nos cinco tomos publicados de Variété”. Os assuntos eram: “Estudos Literários”, “Estudos Filosóficos”, “Ensaios quase Políticos”, “Teoria Poética e Estética”, “Ensino”,“Memórias do Poeta” e “Melodramas”. Eram cinquenta e seis textos, quase todos escritos por encomenda: prefácios, conferências, homenagens, resultados de uma intensa atividade intelectual de quem, depois da publicação, nos anos 1920, de dois volumes de poemas – Album de vers Anciens e Charmes –, precedidos por La Jeune Parque, em 1917, assumira a posição de um dos maiores escritores da França, traduzido quer por R.M. Rilke, na Alemanha, quer por Jorge Guillén, na Espanha, e saudado por um T.S. Eliot, na Inglaterra, ou por uma Victoria Ocampo, na Argentina. Um poeta, portanto, que alcançara o reconhecimento universal e que, para utilizar a expressão de Jorge Luis Borges em um ensaio sobre ele, se transformara em símbolo. Símbolo, diz Borges em Otras Inquisiciones, “de um homem cujos textos admiráveis não esgotam, sequer definem, suas inúmeras possibilidades. De um homem que, num século que adora caóticos ídolos do sangue, da terra e da paixão, preferiu sempre os lúdicos prazeres do pensamento e as secretas aventuras da ordem”.
Foi, no entanto, entre o poeta consagrado de Charmes e o autor público de Variété que, por muito tempo, se conservou secreto o Paul Valéry mais íntimo que, desde 1894 até às vésperas de sua morte, em 1945, anotou sem interrupção, entre as primeiras horas da manhã, aquilo que seria uma espécie de versão valeryana do Livre, de Mallarmé: os movimentos de uma inteligência em busca daquela “atitude central”, que tanto estimava em Leonardo da Vinci, e que se traduzia por reflexões sobre as significações das linguagens das artes, das ciências, da psicologia, da filosofia, do próprio mecanismo de escrever. O resultado são os Cahiers, dos quais o Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) publicou uma edição fac-similar em 29 volumes, entre 1957 e 1961, e a Editora Gallimard, entre 1973 e 1974, publicou uma seleção, em dois volumes, realizada por Judith Robinson. Somente a partir de 1987, a mesma editora iniciou a publicação de edição integral da obra, sob a coedição de Nicole Celeyrette-Pietri e Judith Robinson-Valéry, da qual já apareceram três volumes, o último dos quais em 1990, e que correspondem aos anos de 1894 a 1914. (Diga-se, entre parênteses, que a única tradução publicada, no Brasil, de alguns fragmentos dos Cahiers, deve-se ao poeta Augusto de Campos, em seu livro Paul Valéry: a Serpente e o Pensar, Brasiliense, 1984.) O Paul Valéry público e o consagrado de Variété, de que este livro da Iluminuras dá uma pequena mostra com quinze dos cinquenta e seis textos, completa-se e, por assim dizer, expande-se com os dos Cahiers. Um e outro deixam o leitor sentir o rigor e a precisão da frase de Borges: são todos “lúcidos prazeres do pensamento e (...) secretas aventuras da ordem”.
João Alexandre Barbosa