“Quem chega tarde e irremediável?/O poema. Quer suportar tudo sozinho...”. Sim, aqui o poema ensina a cair. Este é um livro para corajosos, aqueles que se dispõem a aprender a perda. Maria Lúcia Dal Farra conduz a territórios em que somos cegos e desvalidos. Ela nos sequestra para além do abrigo seguro. A poeta expõe, com toda violência do amor morto, as cicatrizes fundas no corpo e na alma com que a velhice, a doença, o isolamento, nos marcam. Assim, realiza o difícil ofício do vidente: trazer para nós, leitores, o máximo de verdade nua que possamos aguentar, como um dos “horríveis trabalhadores” de Rimbaud. Na primeira parte, “Casa Póstuma”, começamos a enfrentar regiões de dor e a mergulhar na aflição. Onde está a nossa casa? Esboroada. Sobraram lascas, lágrimas, rancores. Somos levados a uma zona de escombros, lá onde mora a desolação, em que o vento rasga o “deserto ácido”. Desta vez, a poeta se enterrou no buraco sombrio das lembranças penosas. Atravessou o “campo de desespero”, induzindo o leitor a adentrar o outro lado da fronteira do terreno cultivado. O terrível assoma por trás, de ferro, irremediável.
Tudo foi consumido pelo tempo: os pais, a menina, o piano, no “voo definitivo das telhas”. Resta o cheiro repulsivo do que é roto e podre: “O ar tresanda a medicamentos.”O poema ficou perigoso: ele pode ferir, tem matéria: saliva, sangue, baba. Ou, como nos pesadelos, “canivetes pendurados e abertos: a ponta sobre os olhos”. “Humankind cannot bear very much reality”? A música da ausência é doída. O lar da infância continua amarrado ao corpo, com nós e raízes de parasita. É hora de habitar os próprios porões assombrados, e se submeter à vida que foge, roendo como traça os restos semidevorados ao nosso redor. Os corredores que terminam no nada: “Estamos todos lá fora://despejados.” O sentimento agudo da “ausência espessa”. Em meio às ruínas, resta a caixa de madeira, urna vazia. Oferenda à perda suprema: “Ah, o amor persiste ainda/na sombra que se estende//pela cadeia eterna das montanhas.”
Há um intermezzo, na segunda parte, “Parque de Diversões”, no qual a poeta se debruça às vezes com certo humor, na sua relação com outros escritores, sob a forma de cartas a eles endereçadas, ou mesmo entre eles (por exemplo, uma possível correspondência entre Florbela Espanca e Fernando Pessoa...). São diversas as referências para a inspiração, desde Jorge de Lima até Beckett. Tudo tingido pela auto ironia dos que conhecem tanto o estado de graça quanto a decepção das palavras goradas, para ser capaz ora de saltar ora de se atirar em queda.
Mas, se o leitor se divertiu um tanto nesta roda gigante, elevando-se até o sublime de Dante e do Oráculo de Delfos, e rebaixando-se até a pia da cozinha trincada, nem por isso está preparado para adentrar o “Circo de Horrores” da terceira parte, a mais poderosa investida contra as suas defesas. Se a primeira casa era póstuma, esta, paralela, é tumba de nascituros, onde insetos fantasmas zunem e picam. Sobre ela nos alimentamos, no banquete em que os convivas se entopem de veneno: “Os peixes são negros, as portas são negras/o céu escureceu, as flores despertam negras/e a brancura metálica e translúcida é de//arsênico”. Esmagados, descemos ao inferno e nos afogamos: “O espírito da morte no entanto paira/sobre toda a escrita/com sua tempestade sombria”. E não se pode retirar o ferrão cravado nos interstícios do texto. O peito do leitor se abre para agasalhar e acolher o alto sacrifício da poeta, maga e alquimista, transfigurando a ferida vermelha em voo azul: violeta.
Viviana Bosi