Maria Lúcia foi a minha professora de Literatura. Posso dizer que, sem ela, jamais teria me interessado por literatura portuguesa. Mas seria pouco: quando Maria Lúcia vinha pelo corredor, descalça, e então entrava na sala de aula a cantar e a girar como Isadora Duncan baixada no brejo –, vinha com ela um repelão de vento que fazia voar pelos ares toda a chatice do mundo escolar. Soava o aulós das antigas musas a decretar que, doravante, o tempo e a ordem não eram normais. Estávamos no domínio do enigma e nada mais era tonto ou tedioso, mas inteligente, selvagem e imprevisível. Caótico, não, mas ritual, secreto e feroz, de modo que a astúcia era tão convocada como a coragem. Quando leio os poemas de Maria Lúcia, essa mesma sensação revém, feliz e intata. No seu “Livro de Erros”, o claro enigma da poesia está todo aí. No princípio, vale a lição clássica horaciana: labor limae et mora. Poesia racional, mas não sem emoção. Das palavras, demanda o escrutínio rigoroso do seu sistema de polinização, incluindo cores, espinhos, sem esquecer tumores. No meio do caminho, Maria Lúcia dispõe de seus poetas-guias, que aqui são sobretudo Lezama Lima, Eugénio de Andrade e, sempre, Herberto Helder, Florbela Espanca e Santa Teresa D’Ávila. Do Pessoa, só convoca Ricardo Reis, e com ele as retas razões dos sonetos e a nudez das sílabas. Há também os exibidos a despistar, os que fingem que poesia é vida e atravessam o ritmo, como Ana Cristina César, que Maria Lúcia tritura com elegância gourmet. A poesia de Maria Lúcia equivoca deliberadamente o erro, que não é apenas falha e engano, mas mudança acertada com a pressa do mundo e as várias vidas que precisam ser vividas. Mas nem tudo são filosofia natural, alquimia e poder. Também muito é perdido e dói, sem remissão: a fabulação do pai, a respiração da mãe coragem, os amigos-mariposas, as saudades de menina na casa agora vazia. Aqui a poesia bebe o veneno da melancolia, e sussurra: Ubi sunt? Por fim, na poesia investigativa de Maria Lúcia, o amálgama da razão e do afeto vem com o humor: a confissão de mau gosto, a irreverência da frase evasiva, o gosto do excesso e da bizarrice. A inteligência poética se encontra na contradição cômica. É quando a górgona topa com um homem no quarto escuro, e faz picadinho de sua carne paralisada.
Alcir Pécora
Maria Lúcia Dal Farra é paulista de Botucatu (14/10/1944, onde é patrona de cadeira na Academia Botucatuense de Letras) e tem cidadania sergipana (vive no Nordeste há mais de trinta anos). É mestre e doutora pela USP, livre-docente pela Unicamp e titular pela UFS (onde foi pró-reitora). Professora nessas universidades, também lecionou em Berkeley (Califórnia, USA) e fez parte da equipe pioneira de Antonio Candido que fundou o Instituto de Estudos da Linguagem e o Depto. de Teoria Literária da Unicamp. É autora de O narrador ensimesmado (sobre a romanesca de Vergílio Ferreira – São Paulo: Ática, 1979), de A alquimia da linguagem (acerca da poética de Herberto Helder – Lisboa: INCM, 1986) e de sete livros dedicados a Florbela Espanca, publicados em Portugal e no Brasil. Assina os volumes de poesia Livro de auras (1994), Livro de possuídos (2002), Alumbramentos (Jabuti de Poesia de 2012), Terceto para o fim dos tempos (2017) e o de ficções Inquilina do intervalo (2005), todos editados pela Iluminuras, para além de mais de centena de ensaios e artigos divulgados em periódicos especializados. Da sua correspondência com Vergílio Ferreira, doou 35 cartas para os reservados da Universidade de Évora, e da sua correspondência com Herberto Helder, 52 cartas para os reservados da Universidade da Madeira. Foi indicada (pela Universidade de Évora) para o Prêmio Vergílio Ferreira (2016).