Quanto de imaginação e desejo compõe a memória de uma pessoa? A vida real de Castilho Hernandez oferece muitas respostas a esta pergunta. Como uma composição em caleidoscópio e profundamente sugestivo, este romance do escritor Sidney Rocha põe a nu a alma do seu cantor.
E de todas as figuras que gravitam em torno dos fantasmas viventes da ilha que ele inventa, habita e é-e-não-é, hamletiano em essência e existência, em sua complexa urdidura. Tão expressionista quanto impressionista. E com tal intensidade que pode servir de espelho ao leitor cada um dos flashes dos prazeres e desditas, das verdades e ilusões desta história plena de poesia, em alguém que luta para proteger seu “coração invertido”.
Impossível não sentir simpatia e empatia pelos personagens que, de tão autênticos, parecem nossos vizinhos, amigos próximos, gente conhecida, que mora conosco, ou cada um de nós. Romance sobre a solidão, a sinceridade e, principalmente, a liberdade de ser e agir. Nas suas ambiguidades e multiplicidades, o músico tem algo de Apolo-Dioniso e de Tirésias-Afrodite, ao partilhar suas epifanias, seus lampejos. Num misto de diário íntimo e autobiografia póstuma.
Os românticos vão se identificar com o protagonista. Os realistas ecoarão as palavras do antagonista. De um jeito ou de outro, ninguém ficará indiferente às suas peripécias e verbalizações, tocadas muitas vezes de ironia, de cinismo, alguma doçura e uma pitada de gin e de angostura bitters.
Quem é sentimentalista encontrará seu momento nesta história; um teimoso racional e pragmático, também.
Em Flashes predomina quê de opera buffa sobre outros tons – sonoros e visuais. Palco de sonhos, ruelas de passeios, becos onde sempre existem saídas, este romance esmerila as asas livres prosa para alcançar o voo bem calculado da poesia. “Temos, todos que vivemos,/ Uma vida que é vivida/ E outra vida que é pensada,/ E a única vida que temos/ É essa que é dividida/ Entre a verdadeira e a errada.” Estes versos de Fernando Pessoa resumem um pouco da existência de Hernandez e seus castelos de areia e de cartas. À diferença, no entanto, do lirismo do poeta português, com seus jogos mentais, deliberadamente autotorturados e a que não falta certo barroquismo e maneirismo, não há vida “errada” na solitária trajetória de quem cantando não espantou mal nenhum.
Muito pelo contrário: como se a sua música fosse uma caixa de Pandora de si mesmo, Castilho distribui todos os males e bens em incontáveis compassos e acordes aos seus fãs – reais ou supostos. Ficção do mais alto nível há neste Flashes, nos flashes sanguíneos do coração e do pulso das cenas. É Sidney Rocha um dos melhores romancistas e contistas brasileiros da atualidade.
Virtuoso da construção de atmosferas e diálogos, ele tem desenvolvido, há mais de uma década, um conjunto de narrativas que resulta de toda uma cosmovisão plasmada num lugar chamado de Cromane. A cidade-persona povoada de espectros, ou seja, de flashes que espocam, da memória-fotografia. Tudo reunido no seu livro-do-desassossego mais pessoal e provocativo que o seu leitor – como irmão – vai comprovar, com deleite e inquietação, em cada uma das páginas deste grande romance.
Sidney Rocha escreveu Matriuska (contos, 2009), O destino das metáforas (contos, 2011, Prêmio Jabuti), Sofia (romance, Prêmio Osman Lins, 2014), Fernanflor (romance, 2015) Guerra de ninguém (contos, 2016), e A estética da indiferença (romance, 2018), todos publicados pela Iluminuras.