Jogadores, gângsteres, apostadores, cantores, coristas, leões de chácara, contrabandistas, garçons, pugilistas e até uma missionária. Todos tentando se virar – nem sempre honestamente – na Nova York dos anos 1920 e 1930, tempos da Grande Depressão e da Lei Seca. É essa galeria de efêmeros ganhadores e perdedores que povoa os contos de Damon Runyon (1884-1946), criador de um retrato da grande metrópole americana que continuou a ressoar décadas depois, como nos filmes de Woody Allen e no seriado Seinfeld.
Apesar de sua influência e de ser uma leitura suave e bem-humorada, Runyon permanecia praticamente inédito no Brasil, exceto pela circulação de edições portuguesas. A coletânea Eles e elas, lançada agora pela CARAMBAIA, é um excelente cartão de visitas para o universo de um autor popular e incontornável das letras americanas, admirado e enaltecido por escritores como Julio Cortázar, Guillermo Cabrera Infante, Saul Bellow e Philip Roth.
Runyon era jornalista, especializado em esportes, também um observador da vida cotidiana, e suas narrativas pulsam de autenticidade. Além dos personagens e enredos totalmente convincentes, o escritor criou uma linguagem original, saída das ruas em torno da Broadway, na época começando a ser o grande centro de entretenimento de Nova York. O tradutor Jayme da Costa Pinto, também responsável pela seleção de contos e pelo prefácio da edição da CARAMBAIA, enfrentou o desafio de transpor para o português brasileiro essa dicção, que na literatura anglo-americana deu origem aos termos runyonês e runyonesco, com sua gramática ao mesmo tempo viva e evocativa de uma época passada.
A perfeição dos contos de Runyon costuma ser comparada à de mestres do formato, como O. Henry: começam com uma consideração instigante sobre sua ambientação e terminam invariavelmente com uma surpresa. Todos são narrados por um personagem sem nome do qual se sabe pouco, a não ser que exerce a prudência num mundo de excessos, mas convive sem problemas com uma legião de excêntricos, eventualmente criminosos. Não é, no entanto, um mero espectador. No conto que abre a coletânea (Romance na latitude 40), por exemplo, sua intervenção é crucial para o desenlace da trama.
A relação de Runyon com a Broadway ultrapassou sua ficção e se tornou real. Um dos mais famosos espetáculos da era de ouro do teatro musical americano, Guys and Dolls, era uma adaptação para os palcos de seus contos, que estreou em 1950 (quando o autor já tinha morrido) e foi considerada um acontecimento pelos críticos, além de um imenso sucesso de público. Pelas mãos do mestre Joseph L. Mankiewicz, chegou em 1955 ao cinema com o mesmo título (Eles e elas no Brasil) e Marlon Brando e Frank Sinatra no elenco. O musical se baseou principalmente nos contos O idílio da srta. Sarah Brown e Pressão sanguínea, ambos presentes na seleção da CARAMBAIA. Outro dos contos do volume, A pequena srta. Marker, originou quatro versões cinematográficas, a primeira delas (de 1934) responsável pela transformação em estrela da atriz mirim Shirley Temple.
Alfred Damon Runyan (a troca para Runyon foi um erro tipográfico de um editor, encampado pelo escritor) nasceu numa cidade curiosamente chamada Manhattan no interior do estado de Kansas, filho e neto de jornalistas. Aos 14 anos, alistou-se no exército e foi enviado para as Filipinas para lutar na guerra entre Estados Unidos e Espanha. De volta, passou dez anos escrevendo para jornais locais sobre todos os assuntos, embora se interessasse principalmente por esportes. Em 1911 mudou-se para Nova York, cobrindo principalmente as notícias de beisebol e boxe, mas sempre mais interessado em seus aspectos humanos.
Os contos que escreveu sobre a região da Broadway foram agrupados na coletânea Guys and Dolls em 1931, um sucesso imediato, seguido por outras reuniões de narrativas curtas. Por essa época, passou a escrever colunas sob o título de As I see it, distribuídas nacionalmente para os jornais do grupo Hearst. Casou-se duas vezes e teve dois filhos. Foi um grande apreciador do álcool, mas parou com a bebida ao se casar pela segunda vez. Fumava muito e morreu de câncer na garganta em 1946, dois anos depois de ter a laringe extirpada. Suas cinzas, a seu pedido, foram espalhadas de um avião sobre a ilha de Manhattan.
O projeto gráfico da edição da CARAMBAIA é do Estúdio Claraboia e traz elementos inspirados tanto nas características arquitetônicas da Broadway dos anos 1920 e 1930 como nos personagens da região. As imagens lembram os anúncios e fachadas do período, com fotos do ambiente do tráfico de bebidas e de um balcão de apostas de corridas de cavalos em Nova York. A capa, a numeração dos capítulos e a lombada fazem referência aos jogos e às notas de dólar.