Três narrativas distintas, que se passam em diferentes capitais da Europa oriental, compõem o mais novo livro do escritor Gonçalo M. Tavares, Bucareste‑Budapeste: Budapeste‑Bucareste, lançado agora no Brasil. Nascido em Angola e radicado em Portugal, Gonçalo M. Tavares é um dos mais destacados escritores da atualidade, tendo livros seus traduzidos em cerca de cinquenta países e tendo sido já agraciado com o Prêmio Oceanos, o Prêmio Literário José Saramago e, entre outros, o Prix du Meilleur Livre Étranger (com Aprender a rezar na Era da Técnica) – premiação francesa que já consagrou autores como Gabriel García Márquez, Philip Roth e Orhan Pamuk.
É em meio a tamanho reconhecimento que o autor de cinquenta anos de idade retorna às livrarias brasileiras, com mais uma obra atravessada por sua escrita original e ácida, por vezes sarcástica, trazendo em mãos narrativas ambientadas em Bucareste, Budapeste, Belgrado e Berlim.
Em uma das histórias, acompanhamos a saga de dois irmãos para desmembrar e atravessar uma volumosa estátua de Bucareste para Budapeste, via fronteira terrestre – e eles marcham separadamente: um a levar o corpo da obra; o outro, a cabeça. A ideia é não deixar às vistas dos guardas fronteiriços a identidade do retratado, já que isto poderia trazer sérias complicações aos dois sujeitos, que tentam levar uma obra de grande valia para um milionário. Enquanto isso, na direção contrária, está Miklos, que vai buscar a mãe morta em Budapeste, na tentativa de trazê-la a Bucareste e ali enterrá-la – passando também pela fronteira entre Hungria e Romênia, por terra.
Miklos percorre uma travessia particular, primeiro em busca da casa da mãe e, depois, na lida com o corpo em decomposição. Na narrativa seguinte, ficamos por conhecer “Vujik, o vampiro”, um habitante de Belgrado que tem por hábito devorar fotografias. Por meio dessa prática, Vujik busca apreender as imagens, os lugares e os conteúdos do mundo. É no desvelar da história, entretanto, que compreendemos mais da rotina misteriosa de Vujik, a forma singular de se comunicar e se relacionar com a vida exterior a si mesmo.
Por fim, chegamos à Martha, nascida e criada em Berlim, a constantemente comentar sobre a presença excessiva de estrangeiros, a cor, os idiomas e o cheiro que possuem, criando um constante ambiente de tensão, racismo e xenofobia. Por meio de uma metáfora estridente, compreendemos que Martha não consegue conceber o fato de que estrangeiros varram e, portanto, limpem Berlim. Como o próprio escritor de Bucareste‑Budapeste: Budapeste‑Bucareste define, as histórias do livro estão centradas no “aparente ajustamento, ou no desfasamento forte, entre a grande história e as pequenas vidas”, isto é, rememoram acontecimentos históricos marcantes que ocorreram nos pontos do globo mencionados nas histórias, especialmente durante o século XX – acontecimentos que moldaram as vidas das pessoas, engendraram subjetividades e, até hoje, reverberam e produzem materialidade. Dessa forma, mesclando ironia e crítica, Tavares aproxima grandes acontecimentos do passado a gestos atuais do cotidiano, realocando o macrofactual no micro, mencionando líderes de outrora, políticas de Estado nefastas e comportamentos opressores, excludentes, que ainda perduram. Por vezes, Tavares deixa evidente o absurdo, o trágico, o indigno que perpassa essas situações – fazendo-nos sentir vivas questões de outros tempos.