Elsa Morante (1912-1985) costumava dizer que, no fundo, se sentia “um menino”. E afirmou certa vez, parodiando Flaubert, “Arturo sou eu”. Referia-se ao personagem narrador de A ilha de Arturo – memórias de um garoto, uma assombrosa evocação da infância e da puberdade, que a CARAMBAIA lança com tradução de Roberta Barni. Figura fundamental e singular da vida intelectual na Itália do pós-guerra, Morante não teve, em vida, o reconhecimento merecido fora de seu país, em parte pela discrição pessoal e em parte pela história de vida.
Entre 1941 e 1961, a autora viveu com Alberto Moravia, o mais conhecido escritor italiano de seu tempo. Quando se casaram, ele já era um nome consagrado, e ela tinha publicado apenas um volume de contos. Moravia produzia febrilmente, e Morante destruía a maior parte dos escritos, além de costumeiramente recusar entrevistas. O círculo de amigos da autora, que incluía a romancista Natalia Ginzburg, o cineasta e poeta Pier Paolo Pasolini e o filósofo Giorgio Agamben, também se distinguia das companhias do marido. E, se Moravia era frequentemente associado à escola neorrealista, Morante pretendia tudo, menos se filiar a esse filão, como observa Davi Pessoa no posfácio dessa edição.
A ilha de Arturo se passa às vésperas da Segunda Guerra Mundial em Procida, ilha na região de Nápoles em que o personagem vive uma vida de liberdade e imaginação, sem escola, mas plena de livros e natureza selvagem. A mãe do garoto de 14 anos morreu no seu nascimento e o pai, Wilhelm Gerace, que ele idolatra acima de todas as coisas, passa grande parte do tempo em viagens misteriosas que alimentam os devaneios de Arturo. Os dois vivem no palácio decaído de um amigo de Gerace que acumulou dinheiro e detestava todas as mulheres. Pai e filho desprezam a retraída população da ilha – onde as mulheres se cobrem inteiramente de preto – e admiram apenas os ocupantes de uma prisão instalada numa elevação de Procida.
A segurança de Arturo, para quem a solidão parecia um “estado natural”, é abalada pela chegada da nova esposa do pai, apenas dois anos mais velha do que ele. Sentimentos violentos e confusos começam a aflorar. Acostumado a um pai valente e às vezes cruel, Arturo é levado a conviver com uma adolescente de natureza doce e submissa que dá à luz um meio-irmão. No decorrer do enredo, o garoto se vê diante do despertar do desejo e, mais tarde, de uma revelação sobre o pai.
A ilha de Arturo é um romance de formação complexo e contraditório, em que o aprendizado é corroído por emoções brutais e incontroláveis. Temas como misoginia, homossexualidade, amores interditados e narcisismo permeiam uma narrativa que mistura realismo e tons de fábula, nostalgia e ilusão. No ano de sua publicação, 1957, A ilha de Arturo ganhou o prêmio Strega, o principal reconhecimento literário italiano. Cinco anos depois, o enredo foi levado ao cinema num filme homônimo dirigido por Damiano Damiani.
A capa da edição da CARAMBAIA, que sai pelo selo Ilimitada, é do estúdio ps.2. O volume tem encadernação em capa dura com papel especial dourado, com títulos e desenhos impressos em serigrafia.
Elsa Morante nasceu em Roma num lar tumultuoso como viria a ser toda a sua vida – a mãe, depressiva, mantinha uma relação de amor e ódio com o padrasto. Assim que pôde, Elsa foi morar sozinha. Não tinha como continuar estudando e lutava para sobreviver. Nesse período, publicou histórias em suplementos infantis de jornais de grande circulação. Casou-se com Moravia em 1941, já então perseguido pelo fascismo. No mesmo ano saiu o primeiro livro de Morante, a reunião de contos Jogo secreto. Em 1943, o casal se refugiou nas montanhas de Fondi, na região central da Itália. Além de abertamente antifascistas, ambos eram filhos de judeus: Morante por parte de mãe e Moravia, de pai.
Em 1948, a escritora publicou seu primeiro romance, Mentiras e sortilégio. Nesse período, o casamento turbulento tornou-se uma relação aberta, até a separação em 1961. A ilha de Arturo veio à luz em 1957, e teve a melhor recepção crítica que Morante recebeu em vida. Mais 17 anos se passaram até o aparecimento do quarto e último romance, A história, cujo enredo se relaciona diretamente com a experiência da autora sob o fascismo. A protagonista do livro é filha de mãe judia, mas só passa a identificar-se como tal depois de ameaçada de perseguição. Morante fez questão de lançar o volume em edição simples e barata, e as vendas chegaram a 1 milhão de exemplares em um ano. “Eu deveria agradecer Mussolini”, ironizou. “Quando os alemães ocuparam Roma, em 1943, eu aprendi uma grande lição, a lição do terror.” Morante morreu em 1985.