ARTE E VERDADE - Texto de orelhas escrito por Mariana Ianelli Só com esse seu instinto direto, só como artista, pode ter escrito isto; mas você consegue abarcar também com a razão toda a terrível verdade que nos mostra perguntava a Dostoievski o crítico Bielínski, em um rasgo de entusiasmo após a leitura do manuscrito de Gente Pobre. Foi assim que, aos 24 anos, o escritor até então desconhecido assistiu ao imediato sucesso do seu primeiro romance, antes mesmo de sua publicação, e à celebrização de seu nome no meio literário russo em 1845. Os motivos do acolhimento fervoroso dessa estreia foram vários, a começar pela maneira surpreendente como Dostoievski, valendo-se do romance epistolar sentimental, desceu às profundezas do caráter e da existência de dois personagens representantes da mais cinzenta pobreza dos subúrbios de São Petersburgo. A troca de cartas entre Makar Aleksieievitch, amanuense de meia-idade, funcionário em uma repartição pública, e Varvara Aleksieievna, moça órfã e desonrada, não apenas constitui o espaço partilhado das aflições de personagens à beira da indigência, mas é exatamente nesse espaço de cumplicidade silenciosa que afloram os sonhos e as inquietações de dois anônimos que, apesar da humilhação, do quase desespero, mantêm firmes a esperança e a nobreza de espírito. Em um cenário dramático em que a reputação de um homem depende de um par de botas, onde os pobres socorrem os miseráveis e suplicam por um empréstimo, desponta pela primeira vez, na sua obscuridade material, o homem do subsolo de Dostoievski, aquele que, absorto em suas reflexões, se pergunta quem ele é para os outros, onde está a justiça, o que o destino lhe reserva. Makar Aleksieievitch é tão consciente do seu estado de penúria que chega a sentir compaixão dos seus pensamentos. Existe nessa desolação próxima do patético uma espécie de pudor, de intimidade sagrada, uma integridade moral que supera a zombaria e o desprezo. Dentro da galeria de personagens marcantes de Gente Pobre, comove a família de Gorchkov encerrada em um quartinho, no seu silêncio de túmulo, como uma das pinturas mais dolorosas da fome. Ou o desamparo do velho Pokrovski, zanzando atrás de uma certa carroça, debaixo de chuva, com seu sobretudo puído feito asas de um corvo. Também vale destacar a crítica que Dostoievski faz à pompa e ao cinismo do mundo literário na figura de Rataziaev, escritor de novelões , para quem o dinheiro importa mais do que a honra. Outro aspecto notável do romance é a narrativa paralela aí contida, do diário de Varvara Aleksieievna, no qual se nota a semente de Noites Brancas, aquela atmosfera que Dostoievski chamava de sonhadorismo , uma redoma de solidão em que se foge da realidade pelo sonho, pela contemplação. Compartilhando os desígnios insondáveis de Deus e a opressão da injustiça social, Makar e Varvara compartilham também a leitura de livros. Assim Dostoievski leva o seu escrevente a mirar-se no escrevente de Gógol, o que nele desperta absoluta indignação, e a mirar-se no chefe da estação de Pushkin, personagem com o qual Makar Aleksieievitch se identifica e se emociona. Houve entre os críticos quem visse em Gente Pobre uma síntese de Gógol e Pushkin, por meio da qual a humanidade dos personagens vence a inspiração do sarcasmo. Mikhail Bakhtin fala de uma revolução coperniciana realizada por Dostoievski em relação a Gógol, ao apresentar um personagem autoconsciente em vez de um personagem definido e ridicularizado por seu autor. Sobre todas essas perspectivas, o que surpreende e perdura neste romance, tal como à época de sua publicação, parece ser aquela outra síntese, radiante, que já Bielínski percebera no jovem Dostoievski: a síntese da arte e da verdade. _____________Mariana IanelliPoeta e mestre em Literatura
ISBN-13: 9788561123079Páginas: 216idioma: PortuguêsEdição: 01ED/11Autor: Dostoievski, Fiodor